O historiador brasileiro Leandro
Karnal, autor do livro “Todos Contra Todos”, sobre a história do ódio no país,
afirma que a internet favoreceu “um diálogo de surdos” durante a campanha
eleitoral, mas defende que o clima ainda é muito mais violento nas redes
sociais do que nas ruas
O mito do “homem cordial”, que
Sérgio Buarque da Holanda, o pai de Chico, usou em 1936 para descrever as
raízes dos brasileiros, é enganador. O Brasil nunca foi um país pacífico. A sua
História está manchada a sangue por violência, tortura, conflitos, assassinatos.
Os brasileiros ao volante matam
mais do que a guerra na Síria. O trânsito é uma metáfora trágica, lembra o
historiador Leandro Karnal, autor de “Todos Contra Todos”, sobre as raízes do
ódio no país. “Somos um país violento. [Somos] violentos a conduzir, violentos
nas ruas, violentos nos comentários e nas fofocas, violentos ao torcer por
nosso time, violentos ao votar”.
O que há de novo, sublinha
Leandro Karna, professor da Universidade Estadual de Campinas, é o papel das
redes sociais, que favoreceram um debate “dentro de bolhas sistémicas, bolhas
de acesso à verdade onde há um efeito de eco. Sentimos que todo o mundo está
connosco porque só ouvimos quem concorda connosco”.
Que tempos são estes que vivemos
no Brasil, onde a cisão social provocada pelas eleições é tão acentuada?
O nosso imaginário nacional sempre enfatizou a concórdia, o país da paz e sem desastres naturais. Esse imaginário de que éramos um povo pacífico não corresponde à História, temos uma História extremamente violenta e com episódios muito sangrentos contra indígenas, contra negros, contra a população brasileira
O que é preocupante é a forma
como esse ódio saiu da vida virtual e entrou, por exemplo, nas famílias e nas
redes de amigos, provocando divisões inflamadas.
Sim, é uma característica nova que as redes sociais trouxeram à tona. Estimularam um ódio que estava dominantemente na Internet e que começou a aparecer também no mundo real, com assassinatos e violência motivados por divisões políticas. Não há chance de diálogo, é um diálogo de surdos, onde não se admite nenhuma crítica ao seu candidato e nenhum louvor ao outro candidato. Mas o clima da internet ainda é muito mais violento do que o clima geral, das ruas. A internet faz parecer que somos um país em guerra civil e nas ruas não é o que vemos. A nossa política sempre gerou essa violência, ainda que, ao contrário de Portugal ou dos Estados Unidos, nunca tenhamos eliminado um Rei ou um Presidente da República.
Bolsonaro foi hábil em levar a
sua campanha para as redes sociais e capitalizar essa divisão profunda a seu
favor.
Sendo ele um candidato novo, pertencendo a um partido que até agora era aquilo a que chamamos ‘nanico’, inexpressivo, e que agora é a segunda maior bancada na câmara dos deputados, a sua campanha conseguiu apostar muito mais em meios dinâmicos como as redes sociais do que nos programas de TV. Já ninguém vê propaganda política na televisão. Esta é uma campanha que está a acontecer essencialmente em grupos de WhatsApp, que passaram a ser considerados fontes de verdade. As fotomontagens e as fake news são vistas acriticamente, somos muito mais passionais do que racionais. Isto está insuportável. Você publica uma árvore dizendo que ela é o símbolo do Brasil e que o amarelo está florindo e alguém comenta: “É porque o PT não roubou esta árvore” ou “Com Bolsonaro essa árvore vai florir mais”. As pessoas estão monotemáticas e isso é um equívoco muito grave e que vai repetir-se durante bastante tempo. Pela primeira vez na História brasileira os jovens estão muito politizados, têm muitas opiniões, ainda que os eleitores no geral não tenham argumentos: as suas opiniões são postadas em bolhas epistémicas, bolhas de acesso à verdade, onde causam efeito de eco. Sentimos que todo o mundo está connosco porque só ouvimos quem está connosco. Talvez seja uma oportunidade para a nossa jovem democracia, que ressurgiu em 1985. O que é preocupante é que o estado democrático de direito não tem tantos entusiastas como tinha outrora. Pelo contrário, em nome do seu projeto as pessoas facilmente o sacrificariam.
Porque é que os brasileiros se
desencantaram com a democracia?
É bastante claro que a formulação tradicional da nossa política, através de partidos, eleições reguladas, liberdade de imprensa, não representa mais a forma dinâmica como as pessoas querem ser representadas. A política é analógica e a nossa perceção do mundo é inteiramente digital. Abstrações como sistema e modo de governo pertencem a um debate intelectualizado, e o debate político do eleitor comum brasileiro é um pouquinho mais simples do que esse: ‘Lula deu-me Bolsa Família, ninguém tinha feito nada por mim antes, então voto em Lula, independentemente de qualquer denúncia de corrupção’; ‘Bolsonaro promete metralhar os bandidos, eu fui assaltado e odeio bandidos, então voto Bolsonaro, porque a democracia não garantiu a minha segurança’. Os argumentos são muito mais pessoais do que argumentos teóricos. Somos nós, os professores, os jornalistas, que falamos de princípios. Mas os princípios importam muito pouco à pessoa que está a pensar quanto vai custar abastecer o seu frigorífico, como é a segurança na cidade... Há um debate intelectualizado que não atinge a maioria, até porque temos analfabetos funcionais em grande quantidade. Democracia não é sinónimo de ética, mas de poder trazer à tona os deslizes éticos. Porque é que as empreiteiras afirmam que fazem o mesmo jogo sujo há três gerações e só apareceu agora? Porque agora temos democracia. No período militar não aparecia, então dizia-se que tudo era honesto, tudo era melhor. Não havia denúncias de corrupção na ditadura, e os escândalos da ditadura não apareciam na imprensa, como não aparecem hoje na Coreia do Norte ou
Os brasileiros estão a piscar o
olho à possibilidade de regressarem a um regime militar?
Existe um equívoco: o governo de um militar não é necessariamente um governo antidemocrático. O Brasil teve um Presidente que era militar, Henrique Gaspar Dutra, que governou sendo famoso por ser fiel à Constituição de 1946, logo após a ditadura do nosso Estado Novo. Os EUA foram fundados pelo executivo de um general no ativo, George Washington. O voto universal foi instituído nos EUA por outro general, Andrew Jackson. E o governo de Eisenhower foi um governo de um militar, herói da Segunda Guerra, absolutamente democrático. Então, há uma fantasia que militar é o fim da democracia. Como nós, brasileiros, imitamos tardiamente modelos europeus e americanos, estamos a descobrir o apogeu da guerra fria, de direita vs esquerda, conservadores vs comunistas. Aquilo que terminou teoricamente em 1989 com a queda do Muro de Berlim, o Brasil acaba de descobri-lo com intensidade, acusando o outro de ser comunista ou fascista como supremo chingamento. Temos pouca habilidade na discussão de argumentos, porque temos uma tradição autoritária com pequenos hiatos democráticos, na qual o diálogo nunca foi o forte. Se tivesse de identificar qual é a maior herança que temos de Portugal, além da língua e da religião católica, diria que é o sebastianismo: um dia vai surgir um Presidente que resolva tudo, um líder sério, honesto e enérgico.
Entrevista de Nelson Marques em São Paulo – em Expresso | Na imagem: cartoon Bolsonaro (caceteiro)
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